Mais uma noite fria chega à capital de Dragoria. O rei
Belthasar Ganfourt esperava sentado na escadaria que levava à entrada do
castelo. Seus servos já estavam acostumados a ver seu senhor jogado em um
canto qualquer. Certa vez, em uma reunião com alguns nobres do sul, todos
esperavam por sua presença à mesa para tratar de negócios. Mandaram construir
uma poltrona de ouro e topázios apenas para a especialíssima ocasião.
Belthasar chegou, ignorou o assento, sentou sobre a mesa, serviu-se de vinho,
bebeu dois goles e arrotou.
Duas crianças com arcos nas mãos corriam na direção do Velho Leão.
O mais jovem tinha oito anos, o outro doze. Atrás deles vinha um homem
aparentando trinta anos de idade, usando uma bela armadura de couro com um broche
prendendo sua capa.
- Estão atrasados! Ausdir, que treino mais demorado é esse? - indagou o rei.
- Perdão, meu senhor, os garotos estavam empolgados, eles evoluíram
bastante. São muito esforçados - o servo era alto e esguio, carregava uma
espada curta na cintura.
- Se me chamar de "meu senhor" mais uma vez, quebro o
seu nariz, e cada vez que você se esquecer que deve me chamar apenas de Leão,
terá um osso quebrado, ouviu bem? - a voz rouca do leão ameaçava ainda mais que as palavras.
O servo real engoliu em seco, esboçou um sorrio amarelo e disse:
- Sim, meu se... sim grande leão.
O rei se levantou calmamente, caminhou em direção ao guarda, tentando manter a afeição séria, mas não o fez muito bem. Deixou as gargalhadas escaparem. Suas risadas foram acompanhadas pelas risadas forçadas de Ausdir. Os dois garotos
observavam tudo, já estavam acostumados com a cena.
- Hoje eu acertei o alvo a vinte metros de distância – disse o garoto
mais velho, se gabando.
- Pare de se exibir! – retrucou o mais jovem.
- Parem vocês dois! Se quiserem provar alguma coisa, tentem
alcançar o grande leão!
Belthasar saiu correndo pelo castelo, seguido pelos garotos que
tentavam alcançá-lo. Mesmo aos sessenta anos de idade, ainda sobrava fôlego para
correr e brincar com seus filhos mais novos. Adorado em todo o reino de Dragoria,
sua história fora escrita nos campos de batalha. Após muitos anos de
conflitos, Tenemus e Dragoria passavam por um
período de algo parecido com paz. Mas ninguém sabia quanto tempo iria durar.
(...)
Os comandantes do exército dragoriano estavam presentes no salão
principal, à espera do rei que, como de costume, estava atrasado. Além deles
havia também alguns conselheiros, nobres de famílias importantes e soldados
experientes.
E então surgiu o rei, seguido por seu filho mais
velho, Richard Ganfourt, de vinte e cinco anos, com sua armadura prateada ostentando a cara de
um leão moldado no peitoral, portando sua espada de duas mãos. O filho do
grande leão era conhecido como “Leão Branco”, e desde os dezoito anos de idade já
estava na linha de frente do exército dragoriano.
Richard se posicionou ao lado dos comandantes,
enquanto seu pai completava seu percurso até o trono.
O rei, após sentar-se, olhou para os lados, e com expressão de desapontamento perguntou:
O rei, após sentar-se, olhou para os lados, e com expressão de desapontamento perguntou:
- Onde está o meu vinho?
Um servo se aproximou rapidamente para o servir. Um
dos comandantes, o mais velho deles, portando um grande escudo e uma espada, se
aproximou e começou a falar:
- Grande Leão - iniciou, com cautela. - Venho
servindo fielmente durante décadas, sem nunca contestar ou questionar suas
ordens. Servi ao seu lado em todas as batalhas, estive na linha de frente em
todas as vezes que nossas espadas tiveram que proclamar a justiça e a paz do
reino de Dragoria. Não me entenda mal, meu senhor, mas a rainha
morreu misteriosamente há mais de dois anos, e de lá para cá coisas estranhas
vêm acontecendo em todos os nossos campos. Por que temos tanta confiança
em Tenemus, sendo que eles foram nossos inimigos por gerações? - a fluidez do discurso revelava que o sujeito havia decorado a fala antes de divulgá-la.
Todos estavam comentando em voz baixa e sussurrando
sobre as palavras do Comandante Barvarus II, já que ele falava não apenas por
si mesmo, mas por todos os que ali estavam.
- Barvarus, o que aconteceu com a rainha foi uma
fatalidade, um acidente! – disse um dos conselheiros.
Mais e mais indícios eram apontados pelos nobres daquela sala. O príncipe apenas observava, já sabendo como seu pai reagiria. O Grande Leão levantou de seu trono e sacou sua espada. O som do metal deslizando na bainha fez com que todos se calassem.
- Vocês querem sangue? Querem batalhas e sacrifícios?
– gritou o rei.
Todos na sala levantaram suas espadas e gritam o nome de Dragoria.
- Entendo que o senhor tenha lutado por paz durante anos, meu pai, mas mesmo a paz precisa de manutenção. Não podemos fingir que não está acontecendo nada, não podemos nos cegar diante desses ataques.
Belthasar caminhou em direção ao centro da sala, rodeado por seus soldados.
- Justiça será feita, eu...
Foi quando um soldado adentrou correndo pelo salão
principal, quase sem fôlego e aparentemente exausto.
- Senhor, senhor! Os garotos! A carruagem onde eles
estavam, senhor, precisamos encontrá-los!
Os filhos do rei haviam saído para passear após o
almoço, guiados por Ausdir, iriam aos arredores da cidade de Namish.
- O que aconteceu com meus filhos?! - perguntou o monarca, já preocupado mesmo sem saber a resposta; coisa boa não poderia ser.
Os nobres ficaram surpresos com a interrupção, sem entender
o que estava acontecendo, começam a conversar em voz alta, causando confusão e
muito barulho. Em meio a isso, rapidamente é organizada uma equipe para sair em
busca dos filhos do rei. Enquanto preparavam os cavalos, o soldado explicara
que havia recebido um pergaminho enviado por Ausdir, através de um mensageiro.
No pergaminho dizia que foram pegos em uma emboscada na floresta a caminho de
Namish, e que eram cinco os inimigos restantes: soldados de elite. Ausdir não poderia lutar contra todos e proteger os garotos
ao mesmo tempo. Solicitou que reforços fossem enviados imediatamente.
O rei partiu em direção à floresta, acompanhado de dez
de seus mais habilidosos soldados. Richard foi obrigado a ficar no castelo para
representar seu pai enquanto ele não estivesse.
- Devemos nos dividir para aumentar nossas chances de
encontrá-los, a floresta não é pequena – disse um dos soldados.
Todos pensam em sugerir que voltem para o castelo e retornem as buscas no outro dia, mas ninguém fala a respeito, sabiam que o rei só sairia daquela floresta com seus filhos.
- Apareçam covardes! – bradou o Rei.
Mais setas são atiradas, e mais dois soldados caem. O
cavalo do rei é atingido, e acaba caindo também. Belthasar rola pelo chão, mas
rapidamente se levanta.
- Um covarde ao chão! – comemorou o Grande Leão.
As flechas cessaram.
Surgem dois homens por entre as árvores. Um deles é Ausdir. Ele está com
os dois filhos do rei, que estão desacordados e amarrados.
- Mas o que significa isso? - a fúria sendo cuspida
pela boca do rei.
O servo permanece em silêncio.
O outro homem era um sujeito vestindo um manto marrom
que cobria todo o seu corpo. Tirou o capuz em um movimento lento, empurrando-o para trás, aparentava ter cerca de
quarenta anos, tinha cabelos e olhos negros. Em sua mão, um arco, nas costas: uma
aljava sem flechas.
- Impressionante. Como conseguiu acertar meu
subordinado com uma adaga a metros de distância na escuridão da floresta? –
perguntou o inimigo misterioso.
Um dos soldados que havia sobrevivido ao ataque apontou sua espada para os inimigos.
- Terei sua cabeça!
Num movimento impensado, partiu pra cima do inimigo atacando com um corte
diagonal. O misterioso oponente desviou facilmente dando um passo ao lado,
com suas mãos, imobilizou os braços do soldado e, usando seu pé direito, aplicou uma
rasteira que jogou seu adversário no chão. Tomou-lhe a espada e atravessou sua
garganta.
- Agora tenho uma espada. Eu sabia que não precisaria
carregar mais do que um arco. Seus soldados me equipariam com suas armas.
E então uma flecha atravessou o pescoço do outro soldado que havia restado. Ele caiu no chão enquanto seu sangue quente espirrava banhando as botas do rei.
- Quando as flechas começaram a ser lançadas, demorei
um tempo para perceber que eram três inimigos ao invés de cinco. Abati um com a
minha adaga, então... deveriam restar apenas vocês dois - Belthasar murmurava, tentando entender o que estava acontecendo.
E um um homem ferido surge como um fantasma na noite, com seu arco já
acordoado, apontado a seta na direção ao Grande Leão. Em seu ombro direito, um
corte feito por lâmina deixava escorrer um filete de sangue. Belthasar logo percebeu que sua adaga havia feito
aquilo.
- Vamos, me ataque, eu esmagarei vocês três! - o leão nunca desistia.
A flecha é disparada. Belthasar brande sua
grande espada e parte a flecha em dois, em pleno ar, o impacto muda a
trajetória da parte dianteira que é desviada de seu alvo. Ausdir, incomodado com a destreza do rei, largou as
crianças no chão e partiu para cima do adversário. As espadas de ambos os
combatentes se encontraram e o som estridente das lâminas ecoou pela floresta. Belthasar conseguiu segurar sua espada com uma das mãos em um instante, soqueando seu
inimigo no rosto em um movimento veloz, voltando a segurar a espada com as duas
mãos. Com um ataque certeiro, golpeou o peito de seu antigo servo, abrindo um
grande corte em seu tórax. Ausdir é jogado para trás.
Mas então o rei sentiu a dor aguda fincando na alma. Uma flecha atravessara a perna de Belthasar, em uma das
frestas da armadura, onde acabava a joelheira. Mais uma flecha, agora na
panturrilha da outra perna. O Leão caiu de joelhos, de costas para seu inimigo.
- Nos contos antigos - a voz vinha do arqueiro ferido -, afirmava-se que o leão era
extraordinariamente feroz e ágil, e que a única maneira de despistá-lo era
deixando espelhos para trás. O leão seria distraído por seu próprio reflexo,
pensando tratar-se de um filhote. Não é irônico? Você não parece tão feroz
caído de joelhos. Acaba de ser derrotado justamente por vir atrás de seus
filhotes. Agora, tanto você quanto eles serão mortos - o som do arqueiro preparando-se para atacar
pelas costas com sua última flecha fazia a coragem de Belthasar congelar. Esticou a corda até o seu ponto máximo.
- Diga-me seu nome, meu ceifeiro! – Belthasar estava
ofegante e cuspia sangue, mas exigia saber o nome de seu algoz.
A flecha atravessou o crânio do Grande Leão, saindo pelo seu olho esquerdo. Seu corpo sem vida caiu no chão como um objeto inanimado qualquer.
- Digam ao príncipe que hoje começou as investidas do
caçador de leões, e que ele não mata filhotes - apesar de ter dito ao rei que mataria seus filho, não era verdade. - Agora vão, antes que eu mude de ideia.
As crianças correm chorando, desorientadas. Se
quiserem ser leões de verdade, terão que sobreviver à floresta.
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