As palavras a seguir são parte introdutória do
registro de escritos do mais nobre veterano do exército dragoriano, o rei Belthasar
Ganfourt, também conhecido como “Grande Leão”.
(...)
O
homem acredita ser soberano neste mundo. Pobres coitados, isso sim é o que são.
Aliás, é o que somos, pois por mais que me chamem de leão, não sou de fato um
felino.
Monstro.
Outra bela definição para o homem. Não me entenda mal, mesmo um monstro possui
virtudes. Gigantes e dragões são provas vivas disso.
Ah,
sim, o homem... estava a falar dele, certo? Minha mente sempre embaralha os
pensamentos quando estou a refletir sobre minha raça. Talvez seja pela a
aversão que criei por alguns sujeitos, ou pelo fato de meu velho e cansado
cérebro já estar começando a pregar-me as peças que a vida nos reserva para
esse fim de jornada.
Sim,
é o fim da minha aventura, eu posso sentir. Não sei se é pela idade avançada,
mas tenho me portado de maneira mais questionadora ultimamente, sempre pensando
em questões sem uma resposta definitiva. Perguntas que os filósofos fazem
durante toda a vida, mas que a maioria das pessoas só pensa quando está ociosa demais
ou prestes a morrer. Como por exemplo, a indagação:
Por que diabos a vida é assim?
A morte nos aguarda desde o momento em
que nascemos. Por isso fazemos tudo que nos cabe nesse pequeno período que
separa o primeiro choro e o último suspiro. Mas vos digo que depois de muito
pensar e vivenciar, cheguei à conclusão de que a ordem das coisas está certa,
embora eu tenha passado minha vida acreditando que estava errada.
Nascemos e temos todos os nossos sentidos em perfeito estado. A cada nova descoberta o mundo se recria diante
dos nossos olhos, e assim experimentamos a vida todos os dias. Com o passar dos
anos, passamos a conhecer faces dela que não são assim tão belas, e percebemos
que a mesma mão que acaricia, é capaz de empunhar uma espada, e os tempos de
inocência ficam para trás. A obrigação do trabalho e a espera pelo ócio passam
a fazer parte da rotina diária. Quando menos perceber suas vistas já não
enxergarão tão bem, e seu estômago já não irá digerir aquela refeição deliciosa
com a mesma eficiência. Seus braços já não serão tão fortes e suas pernas mal
aguentarão o peso do corpo.
Quando a areia da ampulheta chegar à metade, seu
corpo nada mais será que um recipiente gasto, portando uma alma que muito
almeja o infinito. No entanto afirmo que, na velhice, ciente de que cada
momento pode ser o último, me dei conta do porquê de as coisas serem de tal
modo. Não posso tentar explicar-lhes com a pena e o papel, por vários motivos.
Um deles é que eu não saberia como fazê-lo de forma plena, e outro é que seria
uma falta de respeito para convosco tirar-lhe o prazer de descobrir certas
verdades por conta própria. Mas vos digo que mesmo as doenças e complicações da
velhice fazem sentido agora. Pois a cada dia que passa, menos estou preso à
esta vida. A dor aguda de facas penetrando em minhas costas é contínua, mesmo
que não haja uma única lâmina, e meu estômago, que antes aguentava quase um
javali inteiro, hoje se enrijece como uma pedra só de ter de processar alguns
pedaços de carne. Acreditariam se eu dissesse que houve época em que eu comia
cinco pernis inteiros de uma só vez? Enfim, a vida me tira alguns prazeres como
que preparando minha alma para se desvincular deste corpo, dizendo:
“Terás
que partir em breve, e é por isso que lhe tiro aos poucos as coisas das quais mais
gosta ou precisa. Adiciono um pouco de dor a cada dia, para que não tenha mais
essa vontade excessiva de continuar aqui para sempre; para que o dia da partida
seja um alívio, não um amontoado de pesares”.
Antes
de entender isso, admito que passei um bom tempo como um velho rabugento, mas
hoje estou totalmente preparado para quando a morte vier abraçar-me. Basta ela
me guiar, irei de boa vontade. Aliás, se ela quiser ir conversando comigo
durante o percurso ao mundo das almas, serei de todo atenção, tenho muitas
perguntas a fazer.
Parto de bom grado, não por desgostar deste mundo, até
porque isso não é verdade, mas meus cabelos brancos, minhas rugas e minhas
dores denunciam que já passei tempo demais aqui.
Então,
antes que eu parta, pretendo compartilhar todo o conhecimento que adquiri sobre
técnicas de combate e estratégia de guerra, para que se preparem caso nossos
vizinhos arrogantes se assanhem novamente.
Sinto
que é meu dever passar minha experiência adiante, pois apesar de nossa carne
apodrecer, nossas palavras ficam. Mesmo das mãos que escreveram e já foram
comidas pelos vermes embaixo da terra, passam as palavras que olhos ainda vivos
lerão.
Agradeço
a todos os amigos e companheiros que me suportaram durante minha jornada,
especialmente à minha esposa, Luccia Jahome Ganfourt, pelo companheirismo, amor
e paciência. Ao meu filhote, Richard Ganfourt, que é indubitavelmente
o mais inteligente felino-homem deste mundo, e aos meus leõezinhos, Kaluh e
Toliel Ganfourt, por serem duas pestes adoráveis.
Introdução e Agradecimento /
Crônicas de Guerra - Técnicas de Combate: da Adaga ao Machado Duplo, por Belthasar Ganfourt I, O Leão
Nenhum comentário:
Postar um comentário