sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

O Velho Criador

Dentre todos os medos prevalece um. Aquele que está lá no fundo, sempre esteve, e sempre estará. O receio de que tudo é em vão. Uma sensação de vazio eterno donde surgem os deuses, emergindo de nossas cabeças e nos mantendo ocupados através da adoração. Uma máscara à realidade, um lapso que nos acolhe o suficiente para que nossa efêmera vida acabe antes que percebamos o inevitável: somos também parte do temeroso vazio. Não o vazio do universo, pois este é mais do que vasto, e por não sermos capazes de mensurá-lo, o chamamos de infinito. Mas sim o oco da existência que insiste em encontrar significado onde não há, e perde a única chance de ser mais que um eco de uma voz distante e irrelevante, perdida na escuridão.

(...)

O quarto estava escuro demais. Sendo ele Deus, deveria ser capaz de iluminar aquele local, pelo simples fato de desejar aquilo. Mas não conseguia, não importava o quão forte imaginasse e desejasse. Sua vontade simplesmente não se realizava. Segurou sua bengala com força e a apontou para a lâmpada apagada no teto, mentalizou as luzes amarelas, em vão. Estava começando a detestar tudo ao redor, e quando Deus se enfurece, o mundo sofre. Atirou a bengala para longe, usou toda a força que tinha para se levantar da poltrona, deu dois passos para frente, buscando a velha mesa de madeira, mas caiu antes de conseguir chegar até ela.

Era como um gigante caindo de um céu escuro, em um chão ainda mais negro, num mundo repleto de obumbração. Por que a vontade de Deus não se tornava realidade? Enquanto refletia sobre aquilo, caído no chão, com a mão enrugada a meio metro da mesa, chegou a algumas conclusões óbvias.

Eram os fiéis. Só podiam ser os fiéis, ou melhor, aqueles que um dia o foram. Oravam menos, e com menos fé. A ciência os havia estragado, contaminado a todos. Os homens gostam de brincar de Deus, trancados em seus laboratórios, com seus pequenos experimentos... e ainda dizem que estão fazendo o bem. Quanta heresia, quanta insolência! Deus é apenas um, e estava desamparado, fraco, abandonado por sua criação. Uma raça ingrata, que o trancara em um quarto escuro e clamava por ele quando precisava de ajuda.

Chega de perdão, chega de misericórdia, queimarei a todos! Só preciso... de um pouco mais de força.

Usou o resto de suas energias para se arrastar até a mesa, mas já não era capaz de se levantar e pegar o que queria. Encarou a perna da mesa por alguns segundos, mas então desistiu. Baixou a cabeça, encostou a face no chão gélido, e assim ficou até adormecer.

Quando acordou, estava sentado na poltrona, na mesma sala, mas ela estava bem iluminada, com as duas janelas abertas deixando os fortes raios de sol entrar. Olhou para a mesa e enxergou o que queria. Uma foto emoldurada em um alumínio que fingia ser prata, com figuras de rosas metálicas em cada canto. A imagem era a de uma família feliz. Estava ao lado de sua esposa, ambos vinte anos mais jovens, com seus dois filhos a fazer caretas, um tentando ser mais engraçado que o outro. E atrás, o mar azul, o céu azul, o mundo azul.

Olhou para o céu, pensou que Deus era irônico, mas complexo demais para que ele pudesse entender. Não precisava tanto assim da bengala, tirou-a do colo e a deixou cair no chão. Caminhou até o porta-retrato, retirou a foto do vidro e a contemplou por ao menos meia hora. Depois, enrolou a fotografia em um pequeno cilindro, e o comeu sem sequer mastigar, deixando todo o canudo passar por sua garganta, como se seu corpo tragasse as memórias, devorando-as como um demônio devora as esperanças dos fracos.

Foi até a parede, tirou seu diploma de biólogo da frente do cofre e girou o disco com as marcações numéricas até a combinação duzentos e vinte e quatro. Pegou a faca prateada que lá estava, sentou de novo na poltrona, e começou a se esfaquear na barriga, enquanto gargalhava sem parar. Fez isso até seu sangue se esvair o suficiente para desmaiar, e por fim, desfalecer. O pequeno riacho vermelho escorreu pelo belo tapete verde e negro, até chegar à escrivaninha, onde havia deixado sua última carta, dizendo:

Por favor, ajudem o Pai! Por favor... não me abandonem!

E essas foram suas últimas palavras, bem abaixo de um vidro de fenobarbital, e outras pílulas que ele deveria ter tomado. Infelizmente, seus filhos estavam longe demais naquela semana. Compromissos de trabalho, férias programadas, enfim, eram muitas as desculpas.

Seja um deus ou não, o risco é irremissível: leva-se tempo, mas as crias abandonam o criador.

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